Cenário atual da pandemia
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde, declarou o surto causado pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2) como pandemia. Naquele momento, a infecção que se iniciou na China em dezembro de 2019, já acometia mais de 118 mil pessoas em 114 países diferentes, sendo responsável por cerca de 4 mil mortes ao redor do mundo.
Foi nesse contexto que os primeiros casos da doença foram diagnosticados no Brasil, provenientes de outros países, escalando para a disseminação local e evoluindo para a forma de propagação comunitária entre a população brasileira de forma alarmante. Em 17 de março de 2020, foi constatado no Brasil o primeiro caso de morte pelo Covid-19, dentre os 291 casos confirmados pelo Ministério da Saúde nesta data (2).
O cenário brasileiro (recente) faz parte da pandemia que atualmente apresenta mais do que 521 mil casos globalmente, em 175 países (2). A doença já é responsável por mais de 23 mil óbitos em todo o mundo, com taxa de letalidade geral de 3,94% (2). As taxas de letalidade variam entre os países acometidos a depender de fatores que possam influenciar tanto o número de óbitos quanto de casos confirmados,como proporção de população de risco na população (número de idosos e/ou pessoas com doenças crônicas), acesso em saúde e disponibilidade de testes diagnósticos e de recursos para lidar com casos graves e críticos(2).
Evidências e lacunas sobre a associação entre diabetes e Covid-19
Estudos e revisões atuais têm ajudado a esclarecer o perfil clínico dos casos de infecção pelo SARS-CoV-2(3), tanto no que diz respeito aos sintomas mais proeminentes, quanto a fatores associados à maior susceptibilidade à infecção e à gravidade da doença.
Os sintomas iniciais parecem não diferir por idade ou presença de comorbidades associadas. A apresentação clínica dos casos foi semelhante nos diversos países e em diferentes idades. Aproximadamente 90% dos pacientes apresentam mais de um sintoma, e 15% dos pacientes apresentam febre, tosse e dispneia (3). Os pacientes podem apresentar-se com náusea ou diarreia 1 a 2 dias antes do início da febre e dificuldades respiratórias (4). A maioria das crianças, incluindo recém nascidos, apresentam sintomas leves, porém podem evoluir com insuficiência respiratória em particular se tiverem comorbidades (5). As gestantes parecem apresentar quadro clínico semelhante ao de mulheres não gestantes (6,7).
Aproximadamente 80% dos pacientes apresentam doença leve, 14% apresentam doença grave e 5% doença crítica (6,7). Pacientes com doença grave podem ter sinais e sintomas de pneumonia viral, ou complicações incluindo síndrome de desconforto respiratório agudo, lesão cardíaca aguda, arritmias, lesão renal aguda, infecção secundária, sepse ou choque (4,5, 8).
Em relação ao perfil de idade e morbidades dos acometidos, os primeiros estudos são chineses, evidenciando que o diabetes é muito frequente dentre os casos internados de Covid-19 e importante fator associado à gravidade da doença e mortalidade.
Um estudo que incluiu 1099 pacientes com COVID-19 na China mostrou que dentre os 173 com doença grave 23,7% apresentavam hipertensão, 16,2% diabetes mellitus, 5,8% doenças cardíacas coronárias e 2,3% doença cerebrovascular (9). Em um outro estudo chinês, com 140 pacientes internados no hospital com COVID-19, 30% tinham hipertensão e 12% tinham Diabetes (10).
Em outro estudo bastante robusto (11), que conseguiu avaliar um total de 44.672 casos de Covid-19 na China, os autores evidenciaram que a taxa de letalidade foi de 2,3% (1023 mortes). Essa taxa foi diferente de acordo com a idade e gravidade da doença, sendo 14,8%entre pacientes com idade igual ou superior a 80 anos (208 de 1408), 8,0% entre 70 e 79 anos (312 de 3918) e em 49,0% entre os casos graves da doença (1023 de 2087). Nenhuma morte ocorreu em pacientes com menos de 9 anos de idade e naqueles que apresentaram formas não graves da doença. A taxa de letalidade foi elevada entre aqueles com doenças crônicas: 10,5% para aqueles com doença cardiovascular, 7,3% para casos com diabetes, 6,3% para aqueles com doença respiratória crônica, 6,0% para casos com hipertensão e 5,6% para câncer (11). Portanto, com bases em evidência compilada até o momento, a mortalidade entre os pacientes com diabetes parece ser mais do que o dobro daquela referida para a população em geral, de cerca de 3,9% (1, 2).
Dentre os 44 672 casos incluídos no estudo supracitado, 1716 eram profissionais da saúde (3,8%), o que ressalta a importância não só do cuidado com os pacientes com doenças crônicas, mas também com os profissionais envolvidos nos cuidados dessas pessoas (11).
Um quarto estudo inclui 52 pacientes críticos com Covid-19, com média de idade de 59,7 anos, sendo 35 (67%) homens, 21 (40%) com alguma doença crônica. Nesse estudo, os não sobreviventes aos 28 dias (32 pacientes) não apresentavam diferença em relação ao tempo de evolução de início dos sintomas ou alteração radiológica até a internação e nem quanto aos sintomas apresentados no início do quadro. As diferenças encontradas entre sobrevivente e não sobreviventes foram a idade mais avançada (64,6±11,2 vs 51,9±12,9) e a maior proporção de pacientes com doenças crônicas (53% vs 20% dos pacientes) entre os não sobreviventes (12).
Outro estudo envolvendo 191 pacientes internados na China com Covid-19, evidenciou que 54 deles foram a óbito e 137 tiveram alta hospitalar (13). Dentre todos os internados, 91 (48%) tinham alguma morbidade, sendo hipertensão presente em 58 (30%) deles, diabetes em 36 (19%) e doença coronariana em 15 (8%). Considerando a presença de doenças crônicas, a maior mortalidade se associou a doença coronariana (OR 21,40, IC95% 4,64-98,76), hipertensão (OR 3,05, IC95% 1,57-5,92), diabetes (OR 2,85, IC95% 1,35-6,05), DPOC (OR 5,40, IC95% 0,96-30,40) e falência de múltiplos órgãos (OR 6,14, IC95% 3,48-10,85). Quando todas essas variáveis foram analisadas em conjunto com idade e exames laboratoriais (análise de regressão multivariada), os fatores que foram preditores independentes de mortalidade foram a idade mais avançada, a falência de múltiplos órgãos e o exame de dímero-d > 1mcg/mL (13). É relevante ressaltar que ser portador de doenças crônicas confere, sabidamente, maior risco de falência de órgãos e nesse caso diabetes e hipertensão podem não aparecer como preditores independentes porque o mediador entre essas doenças crônicas e mortalidade, que seria a falência de órgãos, poderia sobressair nas análises estatísticas, subestimando o real efeito de ambas (13).
Ainda não se tem esclarecida a plausibilidade biológica da associação entre diabetes e a gravidade da Covid-19. Entretanto, alguns autores aventam a hipótese de que medicamentos usados no tratamento de diabetes e hipertensão possam estar relacionados com mecanismos de piora do quadro de infecção pelo SARS-Cov-2 (14). Já foi demonstrado que outros Coronavírus, bem como o SARS-Cov-2, se ligam às células alvo através da enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2), que está expressa em diversos tecidos. Estudos documentaram que a ECA2 está aumentada em pacientes com diabetes mellitus tipo 1 e tipo 2 e que alguns medicamentos podem aumentar a expressão da ECA2, como inibidores da ECA, bloqueadores dos receptores de angiotensina 2 (BRAs), tiazolidinedionas e ibuprofeno. Ainda não existem evidências clínicas para confirmar essa associação e, portanto, Sociedades científicas como a própria Sociedade Brasileira de Diabetes (15, link:https://diabetes.org.br/covid-19/publico/notas-de-esclarecimentos-da-sociedade-brasileira-de-diabetes-sobre-o-coronavírus-covid-19), não recomendam a retirada dessas medicações (16,17).
Outras lacunas do conhecimento em relação a diabetes e a infecção pelo SARS-Cov-2 dizem respeito ao risco de doença e mortalidade de acordo com o tipo de diabetes, a idade dos pacientes com diabetes, tempo de doença, uso de medicações incluindo as supracitadas, grau de controle glicêmico e presença de complicações micro e macrovasculares. O esclarecimento desses aspectos pode ajudar no estabelecimento de medidas de prevenção e mitigação mais efetivas para a situação atual. E todas essas evidências deverão iluminar e incentivar ainda mais nossos propósitos de melhor controle e prevenção primária das doenças crônicas como diabetes.
Bianca de Almeida Pititto.
Departamento de Saúde Publica, Epidemiologia, Economia e Advicacy, SBD;
Departamento de Medicina Preventiva e Programa de Pos-Graduação em Endocrinologia, Unifesp.
Beatriz Thome.
Departamento de Medicina Preventiva e Núcleo de Vigilância Epidemiológica do HSP, Unifesp.
Referências
- Johns Hopkins Coronavírus Resource Center, acessado em 21/03/2020.
- http://plataforma.saude.gov.br/novocoronavirus/
- BMJ Best Practice topic is based on the web version that was last updated: Mar 02, 2020.BMJ Best Practice topics are regularly updated and the most recent version of the topics can be found on best practice.bmj.com.
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