Luciano R. Giacaglia
Coordenador do Departamento de Síndrome Metabólica e Pré-Diabetes da Sociedade Brasileira de Diabetes
A pandemia global do novo coronavírus (COVID-19) parece estar longe de uma solução satisfatória, não somente pela inexistência de medicamentos claramente eficazes, ou de vacinas específicas, mas também pela falta de um amplo conhecimento de todas as nuances epidemiológicas e fisiopatológicas. As razões por trás da elevada proporção de contaminação inter-individual, a inesperada e rápida dispersão por todo o planeta, a presença de um espectro amplo de manifestações sintomáticas e a ocorrência de desfechos graves, mesmo em populações anteriormente não consideradas como de grupo de risco, precisam ser melhor elucidadas. Estes aspectos intrigantes, associados à angústia genuinamente crescente da população, tem exigido a coleta, em tempo exíguo, do maior número de dados científicos, por vezes confiáveis e seguindo as boas normas da ciência mas, em outras circunstâncias, dada a urgência da questão, não seguindo plenamente os protocolos formais da pesquisa científica.
O diabetes mellitus (DM), a hipertensão arterial (HAS) e a idade avançada, considerados fatores de risco para a pior evolução clínica e maior letalidade, trazem a tona a possibilidade de uma relação do desfecho desfavorável da doença com a resistência periférica à insulina (RPI), marca registrada da síndrome metabólica (SM), e diretamente associada a estas três situações clínicas. Aqui precisamos distinguir o papel da RPI isoladamente daquele decorrente da hiperglicemia no paciente com DM.
Não é novidade a correlação do DM com uma maior morbi-mortalidade em diversas infecções virais, bacterianas e fúngicas, razão pela qual recomenda-se sistematicamente, nesta população específica, a vacinação pneumocócica e para H1N1, por exemplo. Todavia, não podemos esquecer que o risco elevado no paciente com DM, pode envolver um viés, já que o DM é mais prevalente na população idosa, que é mais susceptível e que apresentam freqüentemente outras co-morbidades, como doença cardiovascular e renal. A hiperglicemia crônica, por sua vez, provoca danos em diversos órgãos-alvo que são essenciais na manutenção homeostática do organismo, incluindo-se aqui, além das bem conhecidas complicações cardiovasculares, renais e neuronais, a microangiopatia pulmonar, comprometendo a troca gasosa alveolar, já comprometida pelo COVID-19. A hiperglicemia também está ligada a uma menor capacidade eritrocitária de captação e de difusão do oxigênio para os tecidos, processo este secundário à glicação da hemoglobina, com conseqüente modificação da estrutura molecular terciária desta proteína carreadora de oxigênio. A hiperglicemia compromete tanto a resposta imune inata como a imunidade celular adaptativa linfo-monocitária, cruciais no combate não somente a COVID-19, como também a outros agentes oportunistas. Por fim, a hiperglicemia aumenta o risco trombótico, pelo aumento da osmolaridade sanguínea, pela fragilidade crônica do território endotelial, e por disfunção direta das células plaquetárias, que adquirem maior poder de agregação.
No entanto, o enfoque na SM diz respeito aos efeitos da RPI, independente da presença de hiperglicemia. Lembremos que a RPI intensifica-se frente à qualquer estresse agudo, independente de sua existência prévia, em virtude da liberação de hormônios contra-reguladores. O que vem chamando a atenção no mundo inteiro das equipes clínicas é a intensidade da RPI nos pacientes graves, acometidos do COVID-19, sendo a RPI desproporcionalmente elevada ao que se esperaria apenas pelo estresse da infecção viral. Resta, portanto, entender melhor todos os mecanismos envolvidos, embora a exacerbada liberação de citoquinas inflamatórias seja a hipótese mais viável até o presente momento. Some-se a isto o eventual uso de corticosteróides ou drogas vasoativas nas UTIs, medicamentos estes com clara ação anti-insulínica.
A insulina apresenta diversas funções independentes de sua ação clássica gluco-transportadora. Ela estimula a enzima óxido nítrico sintase, fundamental para a geração do óxido nítrico, promovendo melhora na perfusão tecidual, e esta estaria comprometida pela RPI. A insulina inibe a ativação da via NFkB, sendo assim capaz de frear a geração de citoquinas pró-inflamatórias, particularmente a interleucina-6, a interleucina 1β e o fator de necrose tumoral α. Nos casos graves de COVID-19 sabemos que pode existir o fenômeno de tempestade de citoquinas, e seria de se esperar um quadro ainda mais preocupante num paciente que já parte, de base, de um quadro inflamatório crônico decorrente da RPI. No COVID-19, sabemos que os marcadores inflamatórios podem já estar elevados desde o quarto ao sexto dia e que seus níveis circulantes guardam correlação positiva com um mau prognóstico da doença. Existe inclusive o racional de se considerar o uso de medicamentos que potencializam a ação insulínica e que já demonstraram ser capazes de minimizar a geração citoquinas inflamatórias, como a pioglitazona e os agonistas do receptor de GLP-1, porém faltam ainda estudos contundentes, avaliando eficácia e segurança nos portadores de COVID-19. Finalmente, a RPI aumenta a expressão de PAI-1, comprometendo a capacidade fibrinolítica e aumentando o risco de fenômenos trombo-embólicos. Um achado freqüente em pacientes que evoluem para o quadro de Síndrome da Angústia Respiratória do Adulto (ARDS) são os depósitos de fibrina nos espaços aéreos e no parênquima pulmonar, com elevados níveis circulantes de D-dímeros e fibrinogênio. Se o uso profilático rotineiro de heparina seria interessante em pacientes portadores de SM ainda precisa ser analisado.
Sabemos que um grande número de portadores de SM apresentam um quadro de obesidade concomitante. Com o avanço da COVID-19 pela Europa e Estados Unidos, ficou mais evidente que a obesidade entraria em definitivo no rol dos fatores de risco de complicações. Um estudo no Reino Unido observou que 72% dos pacientes internados em UTI por COVID-19 apresentavam obesidade ou sobrepeso. Inclusive, dos pacientes internados em UTI, apresentando índice de massa corpórea (IMC) >30 kg/m2, o índice de mortalidade chegou a taxas de 60,9%. Não podemos esquecer que a obesidade impõe limitações no atendimento clínico como a necessidade de leitos especiais, um maior número de profissionais da saúde para mudanças de decúbito e realização de procedimentos, maior dificuldade de intubação oro-traqueal e maior dificuldade na obtenção de acessos venosos. Em outro estudo francês, observou-se que o risco relativo de necessidade de suporte de ventilação mecânica, comparando-se o IMC >35 kg/m2 com o IMC <25 kg/m2, foi de 7.36 (1.63-33.14; p=0.02). Há tempos que se imputa à obesidade um maior risco de desfecho desfavorável nos casos de infecção por influenza H1N1. A obesidade parece comprometer a memória dos linfócitos T CD8+, diminuindo a capacidade de resposta ao vírus e também reduzindo a eficácia da vacinação específica. Então seria de se esperar algo semelhante no caso da COVID-19.
Entretanto, nos estudos originais de Gerald Reaven, que descreveu a SM, esta descrito que cerca de 40% dos pacientes estudados, e portadores de RPI, não eram obesos. É certo que o maior conteúdo adiposo corporal reduz a mobilidade do indivíduo, favorecendo quadros trombóticos de estase, e compromete a expansibilidade da caixa torácica, aumentando assim a resistência ao fluxo de ar nas vias aéreas. No entanto, o acúmulo seletivo de gordura no território visceral e, principalmente, em tecidos ectópicos, parece estar envolvido na piora do quadro inflamatório. Inclusive, em um estudo realizado na China observou-se maior morbidade nos obesos que apresentavam esteatohepatite não-alcóolica (EHNA) quando pareados a indivíduos com o mesmo IMC, porém sem a presença de EHNA. Ou seja, o risco inflamatório parece estar mais atrelado ao sítio de deposição de gordura do que a quantidade total de gordura corporal.
Em relação à adiposidade ectópoca, observou-se o papel de um grupo de células do interstício alveolar, denominadas lipo-fibroblastos, que manifestam características adipócito-símiles, na evolução grave do quadro respiratório. O acúmulo lipídico excessivo neste grupo de células, além do estímulo de citoquinas inflamatórias, promove a trans-diferenciação das mesmas em mio-fibroblastos e com isso aumentam os riscos de fibrose intersticial pulmonar que, se não concorrem ao óbito, acabam induzindo seqüelas pulmonares perenes em alguns pacientes.
Sendo a hipertensão arterial um fator de risco conhecido, cabe salientar que na RPI, a exacerbação dos efeitos da hiperinsulinemia nos túbulos renais, território este que é exceção no organismo, por não estar sujeito à resistência hormonal, promove aumento da taxa de reabsorção de sódio. Este efeito, aliado à menor concentração de óxido nítrico, ao aumento da conversão de angiotensinogênio em angiotensina, promovido pelos adipócitos viscerais hipertrofiados e, finalmente, pelo espessamento da camada muscular média dos vasos sanguíneos, determinada pelo estímulo da insulina na via trófica das MAP-quinase/mTOR, contribuem ainda mais para o incremento dos níveis pressóricos. A retenção hidrossalina promovida pela hiperinsulinemia poderia ser um fator agravante no quadro respiratório pela sobrecarga volumétrica, especialmente em pacientes com comprometimento da função miocárdica.
Cabe aqui um parênteses em relação à terapia da hipertensão arterial. Estudos apontam que o coronavírus é capaz de se internalizar nas células-alvo através da ligação de proteínas de superfície da partícula viral à enzima conversora de angiotensinogênio tipo II (ACE2). Hipoteticamente, a expressão aumentada desta enzima, em decorrência do uso de drogas como os inibidores da enzima de conversão (iECA) e bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA), poderia facilitar a entrada do vírus nas células do epitélio respiratório. No entanto, esta enzima também tem ações anti-inflamatórias que ajudam a manter a integridade celular. Até segunda ordem, as diversas Sociedades de Cardiologia ainda não recomendam a suspensão destas drogas, pois o controle dos níveis pressóricos continua sendo estratégia primordial. Este aspecto merece maiores estudos, ainda mais em pacientes com SM, onde estas drogas citadas são as de escolha no tratamento da HAS, além do fato de sabermos que o tecido adiposo visceral tem maior expressão de ACE2, tornando este particular território em potencial reservatório do novo coronavírus.
Outra proteína que poderia servir como receptor do coronavírus é a enzima dipeptidil peptidase 4 (DPP-4). Pelo menos isto foi demonstrado com outro coronavírus, responsável pela MERS. Sabe-se que, embora a atividade da DPP-4 não tenha em diversos estudos demonstrado correlação com o IMC, ela encontra-se aumentada em indivíduos com maior quantidade de adiposidade visceral e com RPI, mesmo nos pacientes sem hiperglicemia. Ademais, nos pacientes com EHNA, a hiperexpressão da DPP-4 determina importante resistência insulínica no território hepático. Desta forma esta enzima poderia constituir importante fator de internalização e replicação viral. Resta saber se o uso de drogas inibidoras de DPP-4 teriam algum impacto, favorável ou não, em pacientes com COVID-19, especialmente nos pacientes internados.
Recentemente, a cardiologia vem enfatizando a importância da gordura epicárdica na produção local de citoquinas inflamatórias, com ação lesiva direta sobre os cardiomiócitos, determinando disfunção ventricular. Pacientes com SM, caracteristicamente, apresentam maior volume de gordura em territórios adipocitários viscerais, incluindo a gordura epicárdica. Além disso, existe maior depósito intracelular de gotículas gordurosas nos cardiomiócitos, que comprometem a contratilidade miocárdica. Estes achados, associados a um aumento do tônus do sistema nervoso simpático e à disfunção endotelial cronica aterogênica, determinados pela RPI, impõe um elevado risco de acometimento cardiovascular. Isto é relevante quando se observa que aproximadamente um quarto dos pacientes internados em UTI por COVID-19 apresentam complicações cardíacas, incluindo miocardite, arritmias, insuficiência cardíaca e, eventualmente, morte súbita.
Nos últimos anos a participação da flora intestinal na regulação do nosso metabolismo e de nossa imunidade vem ganhando destaque. A RPI é tanto causa como conseqüência da proliferação desproporcional de cepas bacterianas mais patogênicas, que aumentam o estado pró-inflamatório e interferem em diversos eixos hormonais. O mesmo se diz do efeito destas bactérias comprometendo a barreira imunológica do epitélio gastrointestinal, sendo este dado relevante, especialmente quando se demonstrou a presença de partículas virais do COVID-19 em amostras coletadas em fezes de alguns pacientes.
Outra questão importante é a hipovitaminose D, comum em indivíduos com maior componente de gordura corporal, em idosos e, agora agravada pelo isolamento domiciliar, pela menor exposição solar. Diversos estudos demonstram o papel da vitamina D na imuno-modulação, e sua deficiência tem sido associada a maior risco de infecções respiratórias por diversos agentes infecciosos. Entretanto, o excesso de vitamina D pode ter efeito deletério para os rins e para o sistema cardiovascular, sendo portanto sua reposição realizada com parcimônia, sempre obedecendo o julgamento criterioso da equipe médica.
Finalmente, alguns aspectos sociais vem contribuindo para a piora do quadro clínico nos pacientes portadores de SM, como os quadros de transtorno do humor frente à nova situação e a necessidade de isolamento por longos períodos; os distúrbios do sono, com prejuízo da fase REM de reparação celular; a adoção de uma dieta de pior qualidade, carente em vegetais e legumes, e excessiva em alimentos industrializados; redução das consultas ambulatoriais de rotina, para ajustes terapêuticos; e a baixa aderência à atividade física, quando se sabe que a atividade aeróbica moderada é um excelente modo de melhorar a resposta imunológica, de reduzir a manifestação inflamatória, e de aumentar a sensibilidade periférica à insulina, entre outros benefícios.
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