Pesquisa brasileira com gadgets e IA pode ampliar acesso à detecção de retinopatia e prevenção de cegueira

Pesquisadores brasileiros desenvolvem nova metodologia para ampliar a detecção da retinopatia diabética – importante causa de cegueira entre pessoas de 20 a 74 anos. O modelo inova ao utilizar inteligência artificial e telemedicina no processo de avaliação de retinografias (exame de imagem para análise das estruturas do fundo do olho) captadas por meio de smartphones adaptados. A eficiência do sistema foi comprovada por meio da avaliação diagnóstica de 824 pessoas, com diabetes tipo 2, inscritas na Campanha de Diabetes de Itabuna-BA (evento anual de prevenção e combate a complicações do diabetes), no ano de 2019, e validado pela comunidade médica internacional, por meio de artigo recentemente publicado.

Elaborado por médicos e pesquisadores ligados à Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e IPEPO-Instituto da Visão, o método apresenta elevado potencial para ampliar o acesso da população ao exame ocular – sobretudo, a parcela residente em regiões distantes de grandes centros ou com escassa rede de saúde. 

A articulação e adaptação dessas ferramentas digitais permitem maior acompanhamento epidemiológico de doenças oculares, identificação precoce de alterações que comprometam a saúde do olho e, sobretudo, a prevenção de complicações e posteriores casos de cegueira. Acrescenta-se ainda a possibilidade da formação de equipes colaborativas, em trabalho remoto, para auxiliar a avaliação diagnóstica das imagens coletadas. Segundo o oftalmologista Dr. Rubens Belfort Jr., professor titular da Escola Paulista de Medicina e presidente da IPEPO-Instituto da Visão, as pesquisas sobre o uso de dispositivos e softwares para apoio ao trabalho oftalmológico possuem mais de dez anos e chegam à fase atual em virtude dos avanços acumulados, desenvolvimento de novos aparelhos portáteis e diminuição do custo para aquisição de equipamentos.

Portabilidade e Inteligência Artificial

No estudo, foram analisadas as imagens captadas de 824 participantes, quanto à qualidade (transparência dos meios oculares, foco e limites da imagem). Destas, 82,4% foram aproveitadas para avaliação diagnóstica.

A utilização de algoritmos de deep learning (técnica de aprendizado de máquina a partir de redes neurais artificiais) para análise eletrônica das imagens mostrou alto grau de sensibilidade, apresentando precisão diagnóstica de 71,3%. “As imagens foram analisadas por especialistas e, em paralelo, por meio de softwares. Nem todas as pessoas que o sistema de inteligência artificial identificou como tendo retinopatia, de fato a tinham. Por outro lado, nenhum paciente com quadros graves deixou de ser identificado”, comenta o oftalmologista Dr. Fernando Malerbi, membro do Departamento de Doenças Oculares da Sociedade Brasileira de Diabetes e um dos autores do estudo.

Atualmente, a realização de exames de fundo de olho demanda a presença de um médico especialista. A avaliação da retina pode também ser feita por meio de retinógrafos tradicionais, cuja portabilidade é limitada. Ao acoplar uma câmara especial, confere-se ao smartphone o poder de realização de imagens com qualidade equivalente ao de um retinógrafo tradicional. Contudo, caso um centro médico não disponha de oftalmologistas, equipes de assistência primária podem receber treinamento específico para a captação das imagens. A portabilidade do aparelho ainda possibilita seu transporte a localidades afastadas ou a pessoas com dificuldade de deslocamento – seja em função da pandemia por Covid-19 ou outra condição física limitante.

Telemedicina

A experiência em Itabuna também demonstra o papel da telemedicina e do trabalho colaborativo no diagnóstico da retinopatia. As imagens captadas por meio do dispositivo portátil e pré-analisadas por inteligência artificial foram validadas remotamente por profissionais oftalmologistas de diferentes centros de saúde do país. 

“A utilização do algoritmo de IA potencializou nosso tempo para a realização dos laudos, pois o algoritmo automaticamente separava os pacientes potencialmente normais dos alterados. Com isto, pudemos focar e direcionar os casos mais graves primeiro e viabilizar rapidamente a convocação destes pacientes com retinopatia diabética mais grave, com maior risco de cegueira e outras complicações, para uma nova fase de avaliação – desta vez uma avaliação multidisciplinar”, complementa o oftalmologista Rafael Ernane Andrade, idealizador do Mutirão do Diabetes de Itabuna e membro do membro do Departamento de Doenças Oculares da Sociedade Brasileira de Diabetes, sobre a experiência prática com a metodologia descrita durante a ação de 2020, realizada em plena pandemia, e que seguiu todos os protocolos sanitários. 

Potencialmente, tal forma de organização pode resultar na ampliação de casos avaliados e redução do tempo necessário para obtenção de resultados diagnósticos. O Dr. Belfort Jr. aponta que as próximas etapas dos estudos devem voltar-se ao aprimoramento da inteligência artificial para maior facilitação de processos diagnósticos, de modo que o especialista possa focar os casos e demandas mais complexas.

Desafios

O Dr. Fernando Malerbi aponta que, embora o padrão de classificação de lesões por meio de imagens esteja estabelecido, há décadas, existe um complexo caminho até a aprovação do uso de inteligência artificial no apoio à análise diagnóstica. “Temos uma série de desafios regulatórios até chegarmos à utilização desse modelo de avaliação na população”.

Retinopatia Diabética

Segundo a Sociedade Brasileira de Diabetes, a retinopatia diabética é uma das principais causas globais de acometimento visual, principalmente considerando a população entre 16 e 64 anos. A partir de 20 anos de convívio com a doença, mais de 90% dos pacientes com diabetes tipo 1 e 60% das pessoas com o tipo 2 desenvolvem algum grau de retinopatia. No presente estudo, a prevalência de retinopatia diabética foi de 37,3%, compatível com o valor mundial estimado de 34,6%. Outros estudos nacionais recentes, realizados em diferentes regiões do país, referem a prevalência variando de 24 a 39%, sendo a retinopatia diabética apontada como uma importante causa de cegueira na população adulta da cidade de São Paulo.

O artigo original sobre a pesquisa mencionada está disponível em .