Vivemos em um ambiente de grandes transformações nos últimos séculos. Desde a revolução industrial até a era da internet e da globalização, uma das mudanças mais notórias é que passamos a nos alimentar não somente quando temos fome, mas sim para sentir prazer. Os níveis crescentes de obesidade mundial também ajudam a confirmar que o consumo de calorias tem aumentado de forma significativa nas sociedades humanas, devido à contínua disponibilidade de alimentos de alta palatabilidade. Quando olhamos o ambiente que nos cerca, há uma variedade de alimentos processados e ultraprocessados disponíveis para o consumo, o que contribui para que a oferta esteja ultrapassando a demanda e dessa forma, contribuindo para essa mudança no padrão de fome das pessoas. Mas como funciona esse mecanismo cerebral que “transforma” a fome homeostática (aquela associada à falta de energia e fisiológica) em fome hedônica?
Em princípio é importante colocar que não há um limite preciso entre o que é comer por sentir fome por falta de energia e comer por sentir vontade e prazer. Não houve uma transformação de uma fome em outra, mas sim uma adaptação em que o mecanismo de fome hedônica passou a também controlar nossas escolhas alimentares. Quando pensamos em prazer em nível cerebral, olhamos para o circuito de recompensa cerebral mesolímbico, notadamente o núcleo accumbens, a área tegmentar ventral e os neurônios dopaminérgicos. Os comportamentos ligados ao sistema de recompensa estão associados à antecipação do prazer – memória de um alimento, estímulo visual, olfatório ou até auditivo (sabe aquele crec-crec do biscoito?), passando por estímulo de motivação para obter aquele alimento e finalizando com a aprendizagem de associação (se o alimento corresponde às expectativas, tendemos a buscar experiências semelhantes no futuro).
Mas não é apenas uma questão de comportamentos recompensadores levarem a mais comportamentos recompensadores. Há também o fator palatabilidade do alimento. Sabe-se que os alimentos ultraprocessados (em que há uma mistura de gordura – notadamente a hidrogenada, açúcar e sal) irão conferir aos receptores de sabor estímulos que alimentos encontrados na natureza não conseguem ofertar: o hipersabor. E estudos convergem para o entendimento de que pacientes com obesidade tem uma menor percepção de açúcares e gordura nos receptores de sabor tanto em língua como em todo trato gastrintestinal. E ao perceber menos, come-se mais. Mas há também o outro lado da moeda: será que o consumo frequente de alimentos saturados de sabor torna os receptores menos sensíveis, levando então ao aumento de volume de consumo? Ou ainda será que o consumo frequente de alimentos com alto teor de gorduras saturadas e trans afeta o nosso hipotálamo na medida em que os estímulos da fome homeostática passam a ser exacerbados? É por isso que a fronteira entre fome e prazer ao comer não é tão simples.
Há ainda outras linhas de raciocínio. O papel da dopamina como neurotransmissor que promove a motivação para a recompensa. A hipótese é que pacientes com obesidade possam ter uma menor resposta dopaminérgica e com isso o volume de alimentos teria que ser maior para atingir respostas satisfatórias em nível cerebral. A explicação também passa pela leptina, nosso hormônio fabricado pelos adipócitos brancos, sendo a sinalizadora da reserva energética disponível. Quanto menos leptina, maior a quantidade de dopamina e, portanto, maior sensibilidade à recompensa.
Há também a questão da ansiedade e de mecanismos de compulsão alimentar. Deve-se considerar como possível causa de perda de controle alimentar nos episódios de compulsão que o prazer derivado do consumo de alimentos palatáveis continue a motivar a ingestão mesmo após a fome homeostática estar ausente. Há evidência em humanos que alterações de humor alteram o circuito de recompensa cerebral, tanto pelo aumento da resposta reativa de liberação de cortisol que foi observada em pacientes com bulimia e transtorno compulsivo alimentar quanto pelos efeitos de contenção cognitiva (cognitive restraint) no comer induzido por estresse. Este último fator envolve o esforço voluntário de restringir a comida com o objetivo de controlar o peso corporal e estudos indicam que quanto maior a contenção cognitiva maior a chance de se comer sobre período de estresse.
E por que entender mais sobre os mecanismos que nos fazem comer? O ganho de peso, com o desenvolvimento da obesidade e de doenças crônicas correlatas como Diabetes e aterosclerose passam pela fome hedônica. Quando a pessoa com diabetes precisa receber orientação sobre dieta é preciso considerar que as escolhas alimentares além de mais saudáveis precisam ser satisfatórias do ponto de vista de recompensa cerebral. Aqui a ideia de que faz parte de uma estratégia de controle de peso a reeducação alimentar sem extremismos ou radicalismos, baseado no conceito de que sim, se o alimento corresponde às expectativas, tendemos a buscar experiências semelhantes no futuro – conforme referido anteriormente. Dessa forma, se a experiência com um alimento mais saudável é recompensadora, tende-se a solidificar o processo de reeducação alimentar – tudo o que desejamos no contexto de controle de doenças crônicas associadas ao ganho de peso.
Referências:
- Hedonic Hunger Prospectively Predicts Onset and Maintenance of Loss of Control Eating among College Women, Michael R. Lowe et al. Health Psychol. 2016 March ; 35(3): 238–244.
- Adam TC and Epel ES. Stress, eating and the reward system. Physiol Behav. 2007 Jul 24;91(4):449-58.
Dra. Andressa Heimbecher Soares
- Endocrinologista
- Especialista pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
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