Na última década, dentre as diversas “dietas da moda”, houve um aumento do número de indivíduos evitando a ingestão de glúten para perda de peso corporal e/ou por relatar que sentem maior disposição e menor desconforto abdominal após a retirada desta proteína da dieta. No entanto, a comunidade científica é unânime em dizer que não há necessidade de restringir o glúten caso não haja o diagnóstico de doença celíaca (DC).
A DC é uma disfunção intestinal autoimune, ocasionada por hipersensibilidade e intolerância permanente ao glúten, desenvolvendo-se na presença de fatores genéticos, imunológicos e ambientais (1).
No caso do diabetes mellitus (DM) tipo 2 (DM2), existem poucos dados sobre a prevalência e incidência de DC porque não há associação imunológica entre estas doenças, sendo descrita a frequência do número de casos como comparável ao do restante da população saudável (2, 3).
Contudo, a associação entre DM tipo 1 (DM1) e a DC está bem estabelecida e pode ser explicada por ambas compartilharem o mecanismo genético comum no sistema de antígeno leucocitários humanos (HLA), sendo forte a associação com antígenos HLA-DQ2 e HLA-DQ8 (4, 5). A prevalência de DC em indivíduos com DM1 varia de 3,1 a 7,4%, sendo considerado 20 vezes superior ao da população em geral (6, 7).
A maioria dos casos de DM1 são diagnosticados meses ou anos antes da DC, porém, o contrário também pode ocorrer porque a DC promove lesão da mucosa intestinal, estimulando a absorção de antígenos que induzem uma resposta imunológica com produção de anticorpos contra as células beta-pancreáticas em indivíduos geneticamente predispostos ao DM1 (8).
Apesar da influência genética, para que ocorra o desencadeamento da reação imunológica, é necessária, a presença de um fator ambiental, o glúten (9).
O glúten é o principal desencadeador ambiental da DC. Suas proteínas estão divididas em gliadinas (que pertencem à classe das prolaminas) e gluteninas (da classe das glutelinas). As prolaminas representam a fração tóxica e diferem de acordo com o tipo de cereal: gliadina no trigo, secalina no centeio, hordeína na cevada e avenina na aveia. A toxicidade da gliadina, da secalina e da hordeína está bem estabelecida (1), porém ainda é motivo de controvérsias o papel da avenina na doença celíaca, havendo relatos de que não é necessária a restrição se a aveia não está contaminada com outros cereais (10, 11).
O diagnóstico da DC é complexo e apenas a sorologia positiva associada à endoscopia com biópsia do intestino delgado possibilita o diagnóstico definitivo. Vários métodos sorológicos estão disponíveis para detectar a intolerância ao glúten (dosagem de anticorpos antigliadina, antiendomísio e antitransglutaminase). Apesar disso, os critérios histológicos permanecem como padrão-ouro para o diagnóstico da doença, devendo os marcadores sorológicos serem usados apenas para identificar os indivíduos que irão submeter-se à biópsia de intestino delgado ou mesmo para detectar transgressão à dieta (1).
É relevante ressaltar que indivíduos assintomáticos também podem ter positividade para o diagnóstico da DC, porque a mesma pode apresentar-se de três formas distintas (clássica, atípica ou silenciosa) (1):
● Forma clássica: caracteriza-se por manifestações gastrointestinais intensas (diarreia crônica, má absorção intestinal, distensão abdominal, hipotrofia muscular, irritabilidade, desnutrição, desidratação, desequilíbrio hidroeletrolítico, hipotensão, alteração de humor, letargia, vômitos e anemia);
● Forma atípica: os sinais e sintomas da doença estão ausentes ou são pouco perceptíveis (crianças apresentam deficiência no crescimento e no desenvolvimento, enquanto os adultos podem exibir elevação das enzimas hepáticas, perda de peso corporal sem causa aparente ou condições associadas a hipovitaminoses);
● Forma assintomática ou silenciosa: caracteriza-se por alterações sorológicas e histológicas da mucosa do intestino delgado compatíveis com a doença em indivíduos aparentemente assintomáticos.
Mesmo nos casos assintomáticos, quando o indivíduo apresenta DC além do DM, o tratamento deve ser iniciado o quanto antes, havendo melhora do controle glicêmico e qualidade de vida algumas semanas após o início da dieta isenta de glúten (12-14).
O tratamento da DC é basicamente nutricional, não havendo indicação de medicamentos para controle da doença. Os indivíduos devem seguir dieta isenta de glúten para obter remissão total dos sintomas clínicos. Na maioria, os sintomas mais intensos desaparecem dentro de duas semanas, e a recuperação total das microvilosidades intestinais ocorre após dois anos da exclusão total do glúten (15).
A estratégia nutricional deve considerar a prescrição de dieta isenta em glúten, o rastreamento para deficiências de vitaminas e minerais (ferro, folato, cálcio e vitaminas B6, B12 e D) e a indicação de testes sorológicos para detectar a doença em familiares de primeiro e segundo graus dos pacientes (1).
Os profissionais de saúde precisam enfatizar que a restrição total de glúten é difícil, mas é necessária. Na consulta nutricional, é preciso questionar e compreender se alguma possível transgressão à dieta foi voluntária (comum entre crianças e adolescentes) ou involuntária (exemplos: uso do óleo de fritura no preparo de alimentos com glúten e depois reutilização em preparação isenta de glúten; utilização da mesma faca para passar margarina em pão com glúten e depois passar em bolacha sem glúten; usar tabuleiros ou formas polvilhadas com farinha de trigo e depois reutilizá-las para os produtos sem glúten, sem que tenham sido bem lavadas; rótulos que nem sempre contém a composição correta dos ingredientes). Devemos enfatizar que o paciente leia os rótulos dos alimentos.
O glúten é utilizado na indústria de alimentos pela sua capacidade de dar viscosidade e consistência, além de reter o gás carbônico proveniente da fermentação, promovendo o aumento de volume desejado nas preparações. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) adverte que todos os alimentos ou bebidas, vendidos no país, devem apresentar impressos nos rótulos a frase “contém glúten”.
Precisamos ressaltar que a restrição do glúten deve ser feita apenas para indivíduos com diagnóstico da DC. No passado, autores afirmavam que alguns indivíduos poderiam não ter a doença, mas possuíam uma espécie de sensibilidade à proteína do glúten. Segundo eles, o sistema imunológico destes indivíduos não produz os anticorpos IgG e IgA porque não há a alergia ao glúten, mas o organismo não digere e metaboliza a proteína como deveria, ocasionando os sinais e sintomas de desconforto gastrointestinal. Ao reanalisar os dados de suas próprias pesquisas, os mesmos autores observaram que os relatos de agravamento dos sintomas gastrointestinais foram similares quando os indivíduos consumiam ou não o glúten. Isso fez com que reavaliasse suas conclusões, passando a relatar que “os dados indicaram claramente que os pacientes relataram desconforto gastrointestinal, sem qualquer causa física aparente. “O glúten não foi o culpado. A causa provavelmente foi psicológica” (16-18).
O glúten está presente em vários alimentos e, o indivíduo que restringe o glúten da alimentação diária restringe a alimentação de uma forma geral. A perda de peso corporal decorrente da dieta sem glúten ocorre devido à redução do consumo de alimentos nos quais há a presença do glúten (exemplos: pães, biscoitos, bolos, pizzas, sorvetes, torradas). A dieta fica bastante restrita em termos de variedade porque a maioria dos alimentos possui esta proteína e ocorre assim a redução na ingestão calórica diária com consequente balanço energético negativo (19, 20). Além disso, muitos alimentos isentos de glúten podem não conter os mesmos benefícios nutricionais que os tradicionais (21-23). Desta forma, somente é necessário a restrição do glúten para indivíduos com diagnóstico estabelecido da DC.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. Thompson T. National Institutes of Health consensus statement on celiac disease. J Am Diet Assoc. 2005;105(2):194-5.
2. Kylokas A, Kaukinen K, Huhtala H, Collin P, Maki M, Kurppa K. Type 1 and type 2 diabetes in celiac disease: prevalence and effect on clinical and histological presentation. BMC Gastroenterol. 2016;16(1):76.
3. Sanchez JC, Cabrera-Rode E, Sorell L, Galvan JA, Hernandez A, Molina G, et al. Celiac disease associated antibodies in persons with latent autoimmune diabetes of adult and type 2 diabetes. Autoimmun. 2007;40(2):103-7.
4. Hagopian W, Lee HS, Liu E, Rewers M, She JX, Ziegler AG, et al. Co-occurrence of Type 1 Diabetes and Celiac Disease Autoimmunity. Pediatrics. 2017;140(5).
5. Kozhakhmetova A, Wyatt RC, Caygill C, Williams C, Long AE, Chandler K, et al. A quarter of patients with type 1 diabetes have co-existing non-islet autoimmunity: the findings of a UK population-based family study. Clin Exp Immunol. 2018;192(3):251-8.
6. Pham-Short A, Donaghue KC, Ambler G, Chan AK, Craig ME. Coeliac disease in Type 1 diabetes from 1990 to 2009: higher incidence in young children after longer diabetes duration. Diabetic Med. 2012;29(9):e286-9.
7. Pham-Short A, Donaghue KC, Ambler G, Phelan H, Twigg S, Craig ME. Screening for Celiac Disease in Type 1 Diabetes: A Systematic Review. Pediatrics. 2015;136(1):e170-6.
8. Shahramian I, Bazi A, Sargazi A. An Overview of Celiac Disease in Childhood Type 1 Diabetes. Int J Endocrinol Metab. 2018;16(3):e66801.
9. Sharma N, Bhatia S, Chunduri V, Kaur S, Sharma S, Kapoor P, et al. Pathogenesis of Celiac Disease and Other Gluten Related Disorders in Wheat and Strategies for Mitigating Them. Front Nutr. 2020;7:6.
10. La Vieille S, Pulido OM, Abbott M, Koerner TB, Godefroy S. Celiac Disease and Gluten-Free Oats: A Canadian Position Based on a Literature Review. Can J Gastroenterol Hepatol. 2016;2016:1870305.
11. Tapsas D, Falth-Magnusson K, Hogberg L, Hammersjo JA, Hollen E. Swedish children with celiac disease comply well with a gluten-free diet, and most include oats without reporting any adverse effects: a long-term follow-up study. Nutrition Res. 2014;34(5):436-41.
12. Mahmud FH, De Melo EN, Noordin K, Assor E, Sahota K, Davies-Shaw J, et al. The Celiac Disease and Diabetes-Dietary Intervention and Evaluation Trial (CD-DIET) protocol: a randomised controlled study to evaluate treatment of asymptomatic coeliac disease in type 1 diabetes. BMJ. 2015;5(5):e008097.
13. Assor E, Marcon MA, Hamilton N, Fry M, Cooper T, Mahmud FH. Design of a dietary intervention to assess the impact of a gluten-free diet in a population with type 1 Diabetes and Celiac Disease. BMC Gastroenterol. 2015;15:181.
14. Sponzilli I, Chiari G, Iovane B, Scarabello C, Gkliati D, Monti G, et al. Celiac disease in children with type 1 diabetes: impact of gluten free diet on diabetes management. Acta Biomed. 2010;81(3):165-70.
15. Wahab PJ, Meijer JW, Mulder CJ. Histologic follow-up of people with celiac disease on a gluten-free diet: slow and incomplete recovery. Am J Clin Pathol. 2002;118(3):459-63.
16. Biesiekierski JR, Muir JG, Gibson PR. Is gluten a cause of gastrointestinal symptoms in people without celiac disease? Curr Allergy Asthma Rep. 2013;13(6):631-8.
17. Gibson PR, Muir JG. Not all effects of a gluten-free diet are due to removal of gluten. Gastroenterol. 2013;145(3):693.
18. Aziz I, Dwivedi K, Sanders DS. From coeliac disease to noncoeliac gluten sensitivity; should everyone be gluten free? Curr Opin Gastroenterol. 2016;32(2):120-7.
19. Pearlman M, Casey L. Who Should Be Gluten-Free? A Review for the General Practitioner. Med Clin North Am. 2019;103(1):89-99.
20. Pinto-Sanchez MI, Verdu EF. Non-celiac gluten or wheat sensitivity: It’s complicated! Neurogastroenterol Motil. 2018;30(8):e13392.
21. Jamieson JA, Weir M, Gougeon L. Canadian packaged gluten-free foods are less nutritious than their regular gluten-containing counterparts. Peer J. 2018;6:e5875.
22. Wu JH, Neal B, Trevena H, Crino M, Stuart-Smith W, Faulkner-Hogg K, et al. Are gluten-free foods healthier than non-gluten-free foods? An evaluation of supermarket products in Australia. Br J Nutr. 2015;114(3):448-54.
23. Allen B, Orfila C. The Availability and Nutritional Adequacy of Gluten-Free Bread and Pasta. Nutrients. 2018;10(10).
Dra. Débora Lopes Souto
- Nutricionista, Especialista em Nutrição Clínica pela Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN).
- Doutora em Ciências Nutricionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
- Mestre em Nutrição Humana pela UFRJ.
- Pós-doutora pela Faculdade de Medicina da UFRJ
- Pesquisadora no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da UFRJ
- Membro do Departamento de Nutrição da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) Instagram para COLAB: @deboralopessouto
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